Uma brisa suave entra pela janela aberta do quarto. Vem talvez para suavizar o ar abafado que se sente na divisão. Talvez venha aconchegar a rapariga que é suavemente embalada pela música que melodicamente soa na aparelhagem. Provavelmente é apenas uma companhia refrescante que vem diminuir o vazio do quarto.
Ela chora, como o faz todas as noites, ou quase todas, quando as pessoas dormem, as pálpebras se fecham e é impossível julgar porque não se vê. Chora sem motivo algum, apenas para sentir as lágrimas salgadas a molharem-lhe as faces.
A sua mente vagueia por caminhos que desconhece, sonha acordada com uma realidade virtual que é tão real para si, o seu mundo perfeito, o lugar onde tudo é magnífico e belo, onde as lágrimas não têm razão para brotarem, só se ouvem melodias alegres, as palavras soam mais agradáveis, o sonho reina, o pensamento flui, a alma imagina e sorri.
Quando uma das lágrimas lhe toca o rebordo do lábio, ela retrai-se e acorda do delírio fantasioso e sorri com a facilidade com que se alheia da realidade, e a rapidez com que retoma o seu lugar na grande cama de casal que ocupa quase todo o quarto. O rádio persiste com as suas músicas calmas que embalam e ajudam a adormecer como uma inocente canção de embalar. Mas não hoje. Hoje ela não quer dormir. Quer aproveitar as maravilhas da noite de que é provada devido às ideias predefinidas de que temos de dormir todas as noites. Ela quer ver as estrelas, admirar a pureza da lua, o brilho místico do luar, apreciar o silêncio que chega quando o sol se põe no horizonte e a incita a reflectir, a meditar, a pensar, a sonhar e até a voar…
Boceja. Flecte os músculos da laringe, faringe, maxilar, numa inspiração forçada, devido ao seu lento ritmo respiratório. E por um instante a sua mente regressa às aulas de Ciências, voltando novamente ao ambiente do seu quarto com um sorriso.
Umas belas notas de piano soam no rádio, transportando-a para o mundo imaginário em que movia os dedos tão delicada e habilidosamente como os grandes mestres nas teclas brancas e pretas de um piano de cauda, compunha maravilhosas melodias tais como as de Chopin, Bach, Beethoven, Mozart, Debussy, partituras carregadas de sentimento, cada nota, cada sequência melódica gerando uma sensação diferente em cada pessoa, levando-as a imaginar na sua mente a letra perfeita para aquela música, sendo assoladas de palavras que expressem aquilo que são e sentem, a nostalgia ou uma previsão do futuro, a paixão, a dor, tudo numa simples melodia.
Outra lágrima. Esta baloiça na ponta do seu nariz caindo finalmente nas costas da sua mão direita, sobressaltando-se. Já chega de devaneios por hoje. “Boa noite”, despede-se mentalmente de tudo o que a rodeia, absorvendo cada detalhe, como a fotografia que pende no espelho, a aparelhagem que tanto adora, mais velha do que ela própria, os quadros que cobrem a parede, as inúmeras fotografias, as a aguarela, o cheiro a incenso, o fumo deste que serpenteia no ar, a cortina que suavemente abana com o vento. Olha tudo como se fosse a última vez… “Adeus”.