domingo, 31 de outubro de 2010

memória

Duas crianças sentadas na mesa da cozinha, caladas, a sorrir puerilmente, impacientes, uma senhora junto à banca da cozinha e uma romã.
Parte-a em dois, divide-a cortando-a ligeiramente e depois afastando as duas metades com as mãos. Vai falando enquanto o faz, questionando as crianças acerca do jantar, do dia na escola de cada um, pergunta pelos seus amigos, o usual.
Entretanto corta mais uma vez cada uma das metades ficando à sua frente quatro quartos de uma romã. Para pessoas que nunca abriram uma romã, esta é feita por pequeninos gomos que se assemelham a lágrimas vermelhas, estão algo que aglomeradas e coladas às paredes em pequenas "colónias", sendo estas separadas por finas películas amargas com uma tonalidade entre o verde e o amarelo.
A senhora separa os pequenos gomos, retirando as películas e dispondo cada um destes numa taça de vidro, uma pequenina de sobremesa com a forma de uma maçã transparente cortada ao meio que ainda se encontra no mesmo armário da cozinha, na primeira prateleira.
Os pequenos rubis acumulam-se, os quatro quartos da romã são postos de parte quando já não apresentam vestígios de vermelho.
Dirige-se à gaveta ao lado do frigorífico e retira duas colheres, aleatórias e que eram provavelmente diferentes. Coloca-as na taça, enterrando-as ligeiramente.
As duas crianças rapidamente lhe retiram a taça das mãos regressando aos seus lugares. São um rapaz e uma rapariga, nesse dia provavelmente estariam no segundo ou terceiro ano da escola primária.
Ficam assim, sentados, a saborear a acidez inicial da romã, e o consequente sabor agradável e familiar de um fruto que as suas mães fielmente lhes preparavam quando chegava a sua época.
Alguns anos depois poucas pessoas nos associam um ao outro como conhecidos, muito menos como grandes amigos que ainda somos, aquele género de amigos que já não vemos muitas vezes porque seguimos caminhos completamente diferentes mas que de uma forma directa ou indirecta nos protegemos um ao outro. Ainda consigo ver aquele menino, daquele dia específico e de tantos outros, ainda me preocupo como antes e aquela amizade não é apenas uma memória.
Este menino que eu vi não chegou a quase ninguém, mas eu conheço-o, e neste momento apenas me apetece chamá-lo, preparar uma taça cheia de pequenos gomos vermelhos, mas ambos sabemos que já não é assim tão simples. Infelizmente.

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