terça-feira, 23 de março de 2010

ºº,

Uma batida ao de leve na porta. Um baque surdo e seco que mesmo assim a desperta do seu sono leve.
Arrasta-se lentamente pelo corredor, com o cabelo desgrenhado, envolta no roupão, com o sono estaqmpado no rosto e presente nas covas profundas abaixo dos olhos.
O soalho range à medida que ela cuidadosamente pousa os pés descalços nessa madeira velha e gasta por todos os pés que já a percorreram, quem sabe também numa situação destas.
Ela tacteia na escuridão, sentindo o frio húmido que reveste as paredes. Caminha lentamente tentando não interromper o sono dos restantes habitantes da casa e para fugir à possibilidade de embater em algum obstáculo, forçando a sua visão a penetrar a escuridão da casa.
Teme que o visitante possa já ter partido. Não sabe.
Estende os braços em direcção ao lugar onde julga estar a porta mas engana-se. Caminha um pouco mais. Cada vez mais impaciente por não alcançar aquilo que quer caminha mais depressa, mas o seu corpo, a sonolência que o entorpece atrasa involuntariamente os seus movimentos, deixando-a revoltada, consigo mesma e com a teimosia do seu corpo.
Nos seus pés descalços sente uma brisa fria. Pára. Está próxima da porta. Pousa o ouvido suavemente na porta na esperança de ouvir a respiração do seu visitante. Silêncio. Espreita pelo óculo da porta e não vê nada.
Destranca a porta, esforçando-se por diminuir o ruído metálico do trinco. Roda a maçaneta escurecida da porta de carvalho e puxa a porta. No breve instante em que lhe cabe imaginar as mil e uma possibilidades que dali podem advir, a presença (ou não) da pessoa que espera, a possibilidade de umas mãos cruéis surgirem da escuridão do corredor e a puxarem para dentro, cruzam-lhe o pensamento todo o tipo de situações absurdas, algumas agradáveis, outras não.
Abre finalmente a porta e as suas pupilas dilatam-se perante a claridade da rua, iluminada apenas pela lua. O corredor é inundado pela brisa fria da noite, que traz o cheiro a Verão já presente no ar, assim como o assobio melódico do vento por entre as folhas.
A soleira da porta está vazia, ele já não está ali, desistiu de esperar. No alpendre encontra uma única orquídea rosa delicadamente pousada no primeiro degrau da entrada e com ela uma promessa sussurrada ao vento de um regresso futuro, assim como um beijo escondido nas pétalas da flor.
Nada mais que desilusão. Sai e com uma agilidade inusitada agarra a flor. Olha mais uma vez em volta prescrutando o vazio, procurando algo, esperando vê-lo, mesmo assim.
Uma gota de chuva cai precisamente no canto interno do seu olho esquerdo. Pestaneja instintivamente e essa gota escorre-lhe pela face como se fosse uma lágrima sua.
Uma chuva torrencial que a cobre de água. Não foge. Não chora. Não reage. Completamente impassível perante o que se desenrola em seu redor.
O odor a terra molhada impregna o ar e ela fecha os olhos.
Dirige-se para a porta que deixara entreaberta. Um último relance do olhar, por cima do ombro. Ele devia estar ali.
Arrasta-se pelo corredor. Não sabe se fechou a porta mas também não importa.
Deixa, durante o percurso, um rastro de de água pluvial ou de lágrimas, talvez uma mistura indistinta de ambas. Regressa à divisão de onde partira, ao vazio e à sombra.
Olha pela janela. Já não chove. Olha o céu mas não vê nada.
Corre deseperadamente para a rua, escorregando na água que deixara pelo caminho. Num longo suspiro fecha a porta.
Magoa os pés no empedrado da rua mas não importa.
Corre pela rua, com a orquídea na mão. Precisa de ver o céu, vê-lo realmente.
Um autocarro pára à sua frente. Entra.
O motorista observa-a, o seu cabelo desgrenhado a pingar apesar de não chover já, os pés descalços, a orquídea, a camisola larga que rapidamente agarrara.
"Menina, algo me diz que não devia estar aqui."
"Não devo estar em nenhum lugar específico por isso não importa onde estou."

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