quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A janela

Cada vez que olho para aquela janela recordo todas as vezes que te vi entrar, as saudades que sentia quando te observava já do outro lado do vidro frio, incapacitada de tocar a tua mão, de sentir o seu calor, a sua aspereza, de me sentir protegida pelo teu abraço, sentia a falta do teu cheiro, do odor que emanavas, um perfume inconfundível independentemente da situação, eras tu quem me fazia falta, não a imagem de ti, mas tu do meu lado da janela.
Ainda te consigo ver chegar, com o cabelo a pingar, batendo freneticamente no vidro praticamente suplicando por um pouco do calor da divisão, e eu olhava-te com a superioridade de quem o tem e ao mesmo tempo inveja por não estar a disfrutar da chuva que te molhava, e do abraço molhado que te envolvia lá fora, podia ser o meu.
Nesses momentos olhavas para mim e eu olhava para ti, aproximava-me da janela e encostava o meu queixo no parapeito depois de me sentar no banquinho que tinha mesmo encostado a ela, olhava bem no fundo da tua alma e via que aquilo por que ansiavas não era apenas o conforto da divisão mas a mim, o meu beijo quente, o meu abraço acolhedor, ou pelo menos esperava que assim fosse.
Recordo um desses dias, em que tal como hoje chovia torrencialmente, e enquanto esperava ansiosamente que chegasses ouvia Chopin tocado por Maria João Pires, a sua mestria na movimentação dos dedos, pousando no momento exacto nas teclas brancas e pretas do piano, acompanhada pelo bater constante das gotas de chuva na janela, que embalavam a melodia e preenchiam os silêncios.
Tu chegaste num desses silêncios. Vieste perturbar a atmosfera que pairava no quarto naquele instante, levaste-me do meu transe para um sonho irreal, contigo. Bateste na janela e eu atendi quase que imediatamente à tua chamada. Caminhei com passadas largas e abri o trinco da janela, não te deixei entrar dessa vez, não permiti que deixasses aquele rasto molhado que denotava a tua passagem no chão da habitação, que me recordava por longas horas que tinhas estado mesmo ali.
Olhaste para mim confuso quando saí agilmente da janela para o pátio chuvoso. Não me tentaste demover nem entrar porque procuravas um calor diferente daquele que o quarto te proporcionava. Deixei que as gotas abundantes que caíam do céu me cubrissem por inteiro e dirigi-me para ti, deveria parecer uma rapariga louca, molhada da cabeça aos pés, descalça entre a relva molhada em pleno Inverno, olhando-te por entre uns cabelos negros que pingavam indistintamente, com o canto do lábio levantado num sorriso traquina de menina.
Dei uma enorme gargalhada e abracei-te, beijei-te, amei-te.
Sentámo-nos no chão e deixámo-nos ficar, a observar a chuva do lado errado do vidro, ou talvez não fosse o errado, apenas o era quando não partilhávamos esse mesmo lado. Estúpida divisória de vidro.

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