sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Silêncio impenetrável

"Acordo, mais uma vez, com o toque da minha mãe no meu ombro.
Abana-me violentamente para que desperte, mas não o quero fazer, não quero voltar para esta sociedade na qual me sinto tão deslocada e com razão.
A minha mãe como sempre fala, e eu como sempre não oiço, melhor dizendo não sou capaz de o fazer.
Não quero que me vejam como uma coitadinha que não tem a capacidade de ouvir, uma pessoa surda que merece a compaixão de toda a gente, mas não sou isso. Para evitar estas situações de condescendência não me esqueço de colocar os discretos auriculares nos ouvidos para que pensem que estou apenas desatenta.
Cruzo-me com milhões de pessoas e só consigo pensar na altura agradável em que ainda era capaz de ouvir o que diziam, em que não tinha de me esforçar por reparar no movimento dos seus lábios para perceber as palavras que proferiam quando antigamente nunca me preocupara em fazê-lo.
Desde que perdi a minha capacidade auditiva que tudo me pareceu diferente, mas nada havia mudado, apenas eu. Chorei durante dias pela impossibilidade de ouvir música e de ouvir a chuva a bater na janela, restava-me apenas caminhar até à rua e sentí-la cair, a incapacidade de ouvir o meu próprio choro patético, por nunca mais poder ouvir ninguém a dizer que me ama, posso ver uma pessoa a representar essas palavras com as mãos, escritas num papel ou até lê-las nos lábios de alguém, mas não poderei ouvi-las, e como posso saber que são reais se não o posso fazer?
A única música que oiço são as melodias do meu pensamento, os sons que ainda consigo reproduzir mentalmente, a que me agarro afincadamente mas que começam a esvair-se, a perder-se algures pelo caminho, um dia destes a minha vida vai ser finalmente apoderada na totalidade pelo silêncio que agora abomino, não conseguirei viver depois desse dia.
Talvez isto seja uma despedida, ou quem sabe não. As pessoas que antes queriam estar comigo agora esforçam-se por não se cruzar comigo para não terem de me dirigir a palavra e se esforçarem por me compreender. Perdi a capacidade de ter conversas com todos, já poucos se interessam realmente em ouvir-me, ao contrário dos muitos que páram para me perguntar se está tudo bem apenas para sentirem que fizeram uma boa acção ao falarem com a rapariga surda.
Entretanto fechei-me nos livros, li mais do que alguma vez tinha feito anteriormente, tenho suficiente tempo livre para isso... Não me posso dedicar à música, o violino ficou definitivamente pousado no cimo do armário pois não tenho coragem suficiente para me despedir dele e devolvê-lo e não tenho paciência suficiente para sem ouvir o que toco me esforçar imensamente, lutando contra o impossível, tocando com a minha surdez.
Eu conseguiria viver se as pessoas que me conhecem não tivessem pena da situação em que me encontro, se os meus "amigos" o fossem o suficiente para tentar lidar com a situação assim como eu tive de lidar, amizade profunda posso dizer.
Provavelmente quem ler isto vai achar-me profundamente patética por me lamentar desta forma mas nada me resta senão fazê-lo.
Gostava de no outro dia ter tido coragem suficiente para empurrar a lâmina mais profundamente na minha pele mas não o consegui fazer, como ficaria a minha mãe nesta situação? Pode ser que algum dia um qualquer médico consigo encontrar uma forma de resolver esta situação, ou pelo menos com um qualquer estudo estapafúrdio conseguir que eu tenha a sensação de som novamente através de choques eléctricos no cérebro ou sei lá...
Muito do que me definia antes relacionava-se com a minha capacidade de ouvir, muito focava-se na minha paixão pelos sons de todos os lugares, e agora eles continuam lá mas eu já não tenho capacidade de os ouvir, com a minha surdez perdi também essa parte da minha personalidade e a oportunidade de mostrar a outra ao mundo. Só me resta escrever sobre um mundo sem som, onde as descrições são meramente visuais e as auditivas se baseiam na minha capacidade imaginativa de como será ouvir realmente a água de um rio a correr ou a simples voz de uma pessoa."

1 comentário:

  1. adorei o post :)
    escreves mesmo muito bem, por isso só tenho que dizer para continuares. li o texto todo até ao fim e conseguiu emocionar-me... o que não é fácil, visto que tenho sempre em mente que se tratam de apenas palavras. mas sim, o teu texto está muito bom. por isso, parabéns!
    beijinhos :D

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